
A Competência no Processo Penal Brasileiro
A competência é um dos temas mais importantes e complexos do Direito Processual Penal. Ela define qual juiz ou tribunal tem o poder para processar e julgar determinada causa penal. O Código de Processo Penal (CPP) dedica um título inteiro (Título V) para tratar deste assunto, estabelecendo regras precisas para determinar a competência jurisdicional. Compreender estas regras é fundamental para garantir o respeito ao princípio do juiz natural, consagrado na Constituição Federal.
Conceito e Natureza Jurídica da Competência
A competência jurisdicional pode ser definida como a medida ou limite da jurisdição, representando a parcela do poder jurisdicional atribuída a determinado órgão ou conjunto de órgãos. Em outras palavras, é a delimitação do poder de julgar.
Observação importante: A competência é matéria de ordem pública, o que significa que suas regras são cogentes e não podem ser alteradas pela vontade das partes, salvo exceções expressamente previstas em lei.
Critérios Determinadores da Competência
O artigo 69 do CPP estabelece sete critérios para determinação da competência jurisdicional:
- Lugar da infração (competência territorial ou ratione loci)
- Domicílio ou residência do réu (competência territorial subsidiária)
- Natureza da infração (competência material ou ratione materiae)
- Distribuição (competência por distribuição)
- Conexão ou continência (competência por conexão ou continência)
- Prevenção (competência por prevenção)
- Prerrogativa de função (competência funcional ou ratione personae)
Estes critérios devem ser analisados na ordem que são apresentados no CPP, formando uma verdadeira “pirâmide” para fixação da competência.
Competência pelo Lugar da Infração
A regra geral de competência territorial está estabelecida no artigo 70 do CPP: será competente o foro do lugar onde se consumou a infração ou, no caso de tentativa, o lugar onde foi praticado o último ato de execução.
Situações Especiais:
- Crime consumado no exterior com início no Brasil (art. 70, §1º): competente será o juiz do lugar onde foi praticado o último ato de execução em território nacional.
- Último ato de execução praticado fora do território nacional (art. 70, §2º): será competente o juiz do lugar onde o crime, ainda que parcialmente, produziu ou deveria produzir seu resultado.
- Limites territoriais incertos entre jurisdições (art. 70, §3º): a competência será firmada pela prevenção.
- Crimes de estelionato (art. 70, §4º): quando praticados mediante depósito, emissão de cheques sem provisão de fundos ou transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima. Havendo pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.
Ponto de atenção: O §4º do art. 70 foi incluído pela Lei 14.155/2021, alterando significativamente a jurisprudência anterior que fixava a competência no local onde ocorria o prejuízo (local do banco sacado, no caso de cheques).
Infrações Continuadas e Permanentes
Para infrações continuadas ou permanentes praticadas em território de duas ou mais jurisdições, o artigo 71 do CPP determina que a competência será firmada pela prevenção.
Observação: Crimes permanentes são aqueles cuja consumação se prolonga no tempo (ex.: sequestro, cárcere privado), enquanto crimes continuados são aqueles em que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, em condições de tempo, lugar, maneira de execução semelhantes, considerados pela lei como continuação do primeiro (art. 71 do Código Penal).
Competência pelo Domicílio ou Residência do Réu
Trata-se de um critério subsidiário de fixação da competência, aplicável apenas quando não for conhecido o lugar da infração (art. 72, caput, do CPP).
Desdobramentos importantes:
- Réu com múltiplas residências (art. 72, §1º): a competência será firmada pela prevenção.
- Réu sem residência certa ou de paradeiro ignorado (art. 72, §2º): será competente o juiz que primeiro tomar conhecimento do fato.
- Ação penal privada (art. 73): nas ações exclusivamente privadas, o querelante poderá optar pelo foro do domicílio ou da residência do réu, mesmo que conhecido o lugar da infração.
Ponto de atenção para concursos: O art. 73 representa uma exceção à regra geral, conferindo ao querelante (vítima) uma faculdade de escolha entre o foro do lugar da infração ou o do domicílio/residência do réu. Esta opção só existe para ações penais exclusivamente privadas.
Competência pela Natureza da Infração
A competência material é regulada pelas leis de organização judiciária, com exceção da competência do Tribunal do Júri, que vem expressamente prevista no CPP (art. 74).
Ao Tribunal do Júri compete o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados (art. 74, §1º), que são:
- Homicídio simples ou qualificado (art. 121, §§1º e 2º do CP)
- Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, parágrafo único, CP)
- Infanticídio (art. 123, CP)
- Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (art. 124, CP)
- Aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante (art. 125, CP)
- Aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante (art. 126, CP)
- Aborto qualificado pelo resultado (art. 127, CP)
Observação importante: A competência do Tribunal do Júri é assegurada constitucionalmente no art. 5º, XXXVIII, da CF/88, sendo considerada cláusula pétrea.
Desclassificação da Infração
- Se o juiz desclassificar a infração para outra de competência distinta, o processo será remetido ao juiz competente, salvo se a jurisdição do primeiro for mais graduada, caso em que haverá prorrogação de competência (art. 74, §2º).
- Se o juiz da pronúncia desclassificar para infração de competência de juiz singular, observar-se-á o art. 410 do CPP (art. 74, §3º).
- Se a desclassificação for feita pelo próprio Tribunal do Júri, caberá ao seu presidente proferir a sentença (art. 74, §3º).
Competência por Distribuição
Quando na mesma circunscrição judiciária houver mais de um juiz igualmente competente, a precedência da distribuição fixará a competência (art. 75, caput).
O parágrafo único do art. 75 estabelece uma regra importante: a distribuição realizada para concessão de fiança, decretação de prisão preventiva ou qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa prevenirá a distribuição da ação penal.
Ponto de atenção: Este dispositivo consagra o instituto da prevenção através da distribuição, evitando que mais de um juiz atue no mesmo caso antes mesmo do início formal da ação penal.
Competência por Conexão ou Continência
A conexão e a continência são causas modificadoras da competência que determinam a reunião de processos para julgamento conjunto.
Hipóteses de Conexão (art. 76)
- Conexão intersubjetiva: quando duas ou mais infrações forem praticadas:
- Por várias pessoas reunidas, ao mesmo tempo;
- Por várias pessoas em concurso, ainda que diverso o tempo e o lugar;
- Por várias pessoas, umas contra as outras.
- Conexão objetiva: quando, no mesmo caso, umas infrações forem praticadas para facilitar ou ocultar outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem.
- Conexão probatória ou instrumental: quando a prova de uma infração influir na prova de outra.
Hipóteses de Continência (art. 77)
- Quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
- No caso de concurso formal, erro na execução (aberratio ictus) e resultado diverso do pretendido (aberratio criminis).
Observação: A continência ocorre quando há um único fato com pluralidade de agentes ou pluralidade de crimes, enquanto na conexão há pluralidade de fatos que devem ser julgados conjuntamente por alguma das razões estabelecidas no art. 76.
Regras para Determinação da Competência na Conexão e Continência (art. 78)
- No concurso entre júri e outro órgão, prevalece a competência do júri;
- No concurso de jurisdições da mesma categoria:
- Prevalece o lugar da infração com pena mais grave;
- Se as penas forem iguais, prevalece o lugar com maior número de infrações;
- Nos demais casos, firma-se pela prevenção.
- No concurso de jurisdições de diferentes categorias, predomina a de maior graduação;
- No concurso entre jurisdição comum e especial, prevalece a especial.
Ponto de atenção: A Lei 14.155/2021, ao modificar o §4º do art. 70 do CPP, criou uma regra específica para os crimes de estelionato praticados mediante depósito, emissão de cheques sem fundos ou transferência de valores, determinando que a competência será do local do domicílio da vítima, afastando as regras gerais de conexão e continência.
Unidade de Processo e Julgamento (art. 79)
A conexão e a continência implicam unidade de processo e julgamento, mas há exceções:
- No concurso entre jurisdição comum e militar;
- No concurso entre jurisdição comum e juízo de menores.
A unidade do processo também cessará se, em relação a algum corréu, sobrevier o caso previsto no art. 152 (doença mental).
A unidade do processo não implica necessariamente unidade de julgamento quando houver corréu foragido que não possa ser julgado à revelia, ou na hipótese do art. 461 (ausência do réu à sessão de julgamento do júri).
Separação Facultativa de Processos (art. 80)
O juiz poderá separar os processos quando:
- As infrações forem praticadas em circunstâncias de tempo ou lugar diferentes;
- Pelo número excessivo de acusados, para não prolongar a prisão provisória;
- Por outro motivo relevante.
Observação: A separação facultativa é uma exceção à regra de unidade processual, baseada no princípio da celeridade e economia processuais.
Perpetuação da Competência (art. 81)
Uma vez reunidos os processos por conexão ou continência, o juiz continuará competente em relação aos demais processos, mesmo que venha a proferir sentença absolutória ou de desclassificação no processo de sua competência originária.
Excepcionalmente, quando a competência for do júri por conexão ou continência, se o juiz desclassificar a infração, impronunciar ou absolver o acusado, de maneira a excluir a competência do júri, remeterá o processo ao juízo competente.
Avocação (art. 82)
Se forem instaurados processos diferentes, apesar da conexão ou continência, a autoridade com jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste último caso, a unidade dos processos só ocorrerá posteriormente para efeito de soma ou unificação das penas.
Competência por Prevenção
A prevenção é critério subsidiário de fixação da competência, aplicável quando dois ou mais juízes forem igualmente competentes ou tiverem jurisdição cumulativa. Será prevento o juiz que primeiro praticar algum ato do processo ou medida a ele relativa, mesmo antes do oferecimento da denúncia ou queixa (art. 83).
Ponto de atenção: A prevenção fundamenta-se no princípio do juiz natural e visa evitar decisões conflitantes. É utilizada para definir a competência em várias situações no CPP, como nos crimes permanentes ou continuados (art. 71), réu com múltiplas residências (art. 72, §1º) e limites territoriais incertos (art. 70, §3º).
Competência pela Prerrogativa de Função
Determinadas autoridades, em razão do cargo ou função que exercem, têm direito a foro especial, sendo processadas e julgadas originariamente por tribunais específicos, conforme determina a Constituição Federal e, em alguns casos, as Constituições Estaduais.
O art. 84 do CPP menciona que a competência pela prerrogativa de função cabe ao STF, STJ, TRFs e TJs dos Estados e DF, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
Observação crucial: O STF, na AP 937-QO, restringiu o alcance do foro por prerrogativa de função, estabelecendo que este se aplica apenas aos crimes praticados durante o exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.
Os arts. 86 e 87 do CPP apresentam regras que hoje estão parcialmente superadas pela Constituição Federal de 1988, que redistribuiu as competências dos tribunais superiores.
Disposições Especiais de Competência
O CPP traz regras específicas para algumas situações particulares:
- Crimes praticados fora do território brasileiro (art. 88): será competente o juízo da capital do estado onde o acusado por último residiu. Se nunca residiu no Brasil, será competente o juízo da capital da República.
- Crimes em embarcações (art. 89):
- Nas águas territoriais brasileiras ou rios/lagos fronteiriços: competente é a justiça do primeiro porto brasileiro onde tocar a embarcação após o crime;
- Em alto-mar em embarcação nacional: competente é a justiça do último porto brasileiro em que a embarcação tenha tocado.
- Crimes em aeronaves (art. 90): serão processados pela justiça da comarca onde ocorrer o pouso após o crime, ou de onde houver partido a aeronave.
- Competência incerta (art. 91): não se determinando a competência pelas regras dos arts. 89 e 90, ela se firmará pela prevenção.
Súmulas Relevantes sobre Competência
Súmulas do STF:
- Súmula 702: “A competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau.”
- Súmula 721: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual.”
Súmulas do STJ:
- Súmula 122: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal.”
- Súmula 147: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes praticados contra funcionário público federal, quando relacionados com o exercício da função.”
- Súmula 244: “Compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos.” Observação importante: Esta súmula encontra-se superada pela inclusão do §4º ao art. 70 do CPP, feita pela Lei 14.155/2021, que fixou a competência no domicílio da vítima.
- Súmula 546: “A competência para processar e julgar o crime de uso de documento falso é firmada pelo local onde o delito se consumou.”