
Classificação dos Bens no Código Civil
O Livro II da Parte Geral do Código Civil (Lei nº 10.406/2002) dedica-se a classificar os bens, estabelecendo categorias que são fundamentais para a aplicação de diversas normas jurídicas, desde contratos e obrigações até direitos reais, família e sucessões. Compreender essas classificações é essencial não apenas para a teoria do direito, mas principalmente para a resolução de casos práticos e questões de concurso. Vamos analisar artigo por artigo, destacando os pontos cruciais.
Bens Considerados em Si Mesmos
Esta primeira parte do Título I (Arts. 79 a 91) analisa os bens por suas características intrínsecas.
Bens Imóveis (Arts. 79 a 81)
- Conceito Fundamental (Art. 79): São bens imóveis o solo e tudo que a ele se incorpora de forma natural (árvores, fontes) ou artificial (construções, plantações). Essa é a noção de imóvel por natureza ou por acessão física.
- Exemplo: Terrenos, edifícios, árvores enquanto ligadas ao solo.
- Imóveis por Determinação Legal (Art. 80): A lei considera como imóveis, para produzir certos efeitos jurídicos:
- I – Direitos reais sobre imóveis e ações correlatas: Hipoteca, usufruto sobre um terreno, servidão predial, e as ações judiciais para defender esses direitos (ex: ação reivindicatória de imóvel).
- II – Direito à sucessão aberta: O conjunto de bens deixado por alguém que faleceu (herança) é considerado um bem imóvel por ficção legal, mesmo que seja composto apenas por bens móveis.
- Ponto de Atenção: Esta é uma ficção jurídica importantíssima! A herança é uma universalidade de direito e tratada como imóvel para fins legais (ex: necessidade de escritura pública para cessão de direitos hereditários). Isso cai muito em prova!
- Bens que Mantêm Caráter Imóvel (Art. 81):
- I – Edificações removidas: Se uma casa é movida inteira para outro local, mantendo sua unidade, ela não perde o caráter de imóvel.
- II – Materiais separados provisoriamente: Tijolos ou telhas retirados de um prédio para reparo e que serão recolocados nele continuam sendo considerados parte do imóvel.
- Observação: A chave aqui é a provisoriedade e a intenção de reemprego no mesmo prédio. Se a demolição for definitiva, os materiais voltam a ser móveis (Art. 84).
Bens Móveis (Arts. 82 a 84)
- Conceito Fundamental (Art. 82): São móveis os bens que podem ser movidos por si próprios (semoventes, como animais) ou por força externa (coisas inanimadas, como um carro ou cadeira), sem que isso altere sua substância ou destinação econômica-social. Essa é a definição de móvel por natureza.
- Móveis por Determinação Legal (Art. 83): A lei considera móveis:
- I – Energias com valor econômico: Energia elétrica, térmica, etc.
- II – Direitos reais sobre objetos móveis e ações: Penhor, propriedade de um veículo e as ações para defendê-los.
- III – Direitos pessoais de caráter patrimonial e ações: Créditos, obrigações de fazer/não fazer/dar coisa certa (que não seja imóvel), e as ações de cobrança ou execução.
- Ponto de Atenção: Direitos autorais, embora de natureza imaterial, são considerados bens móveis por força deste inciso para efeitos patrimoniais.
- Materiais de Construção (Art. 84):
- Enquanto destinados à construção mas não empregados, são móveis.
- Após a demolição de um prédio, os materiais resultantes (entulho, madeira, etc.) readquirem a qualidade de móveis.
- Observação: A classificação muda conforme o estágio: móvel -> (vira parte do) imóvel -> móvel novamente.
Bens Fungíveis e Consumíveis (Arts. 85 e 86)
- Bens Fungíveis (Art. 85): São os móveis que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
- Exemplo: Dinheiro, grãos de café do mesmo tipo e safra, canetas iguais.
- Contraste: Um quadro específico de um pintor famoso é infungível.
- Importância: A fungibilidade é crucial em contratos como o mútuo (empréstimo de coisa fungível) e o depósito.
- Bens Consumíveis (Art. 86): São os móveis cujo uso normal leva à destruição imediata de sua substância (alimentos, combustível).
- Também são considerados consumíveis os bens destinados à alienação (venda), como o estoque de uma loja.
- Ponto de Atenção: Não confundir consumível com deteriorável. Um carro se deteriora com o uso, mas não é consumível, pois seu uso primário não o destrói imediatamente. Um pacote de arroz é consumível. Uma obra de arte em exposição numa galeria (destinada à alienação) é tratada como consumível para certos efeitos legais.
- Importância: Bens consumíveis não podem ser objeto de contratos como o comodato (empréstimo para uso), que exige a devolução da mesma coisa.
- Também são considerados consumíveis os bens destinados à alienação (venda), como o estoque de uma loja.
Bens Divisíveis (Arts. 87 e 88)
- Conceito (Art. 87): São aqueles que podem ser divididos em partes sem que isso:
- Altere sua substância (um saco de areia dividido continua sendo areia).
- Cause diminuição considerável de valor (dividir um diamante grande pode diminuir o valor proporcional).
- Prejudique o uso a que se destina (dividir uma vaca prejudica seu uso).
- Exemplo divisível: Um terreno grande (em regra), dinheiro.
- Exemplo indivisível: Um cavalo, uma estátua.
- Indivisibilidade por Lei ou Vontade (Art. 88): Mesmo bens naturalmente divisíveis (como um terreno) podem se tornar indivisíveis:
- Por determinação legal: Módulo rural mínimo, fração ideal mínima em condomínios edilícios.
- Por vontade das partes: Em um contrato ou testamento, os envolvidos podem estipular a indivisibilidade por um prazo (máximo de 5 anos, permitida prorrogação – Art. 1.320, §1º e 2º).
- Observação: A indivisibilidade tem grande impacto em condomínios e partilhas.
Bens Singulares e Coletivos (Arts. 89 a 91)
- Bens Singulares (Art. 89): São os bens considerados individualmente, mesmo que estejam reunidos.
- Exemplo: Um livro específico, uma cadeira, um boi.
- Universalidade de Fato (Art. 90): É um conjunto de bens singulares (móveis), pertencentes à mesma pessoa, que recebem uma destinação unitária.
- Exemplo: Uma biblioteca (conjunto de livros), um rebanho (conjunto de animais), o estoque de uma loja.
- Parágrafo único: Os bens que compõem a universalidade de fato podem ser objeto de relações jurídicas próprias (vender um livro específico da biblioteca).
- Universalidade de Direito (Art. 91): É um complexo de relações jurídicas (bens, direitos, deveres, ativos e passivos) de uma pessoa, dotado de valor econômico. É uma criação legal.
- Exemplo: A herança (patrimônio do falecido), a massa falida (patrimônio do falido), o patrimônio de uma pessoa em geral.
- Ponto de Atenção: Diferente da universalidade de fato (que é um conjunto físico de bens com destino comum), a universalidade de direito é um conjunto abstrato de relações jurídicas tratado unitariamente pela lei. A herança é o exemplo clássico.
- Exemplo: A herança (patrimônio do falecido), a massa falida (patrimônio do falido), o patrimônio de uma pessoa em geral.
Bens Reciprocamente Considerados (Arts. 92 a 97)
Aqui, os bens são classificados pela relação que têm uns com os outros.
- Bem Principal e Acessório (Art. 92):
- Principal: Existe por si só (o solo).
- Acessório: Sua existência depende do principal (a árvore plantada no solo, a construção sobre o solo).
- Regra Fundamental: Salvo disposição em contrário, o acessório segue o destino do principal (acessorium sequitur principale). Se o solo é vendido, a árvore e a construção geralmente vão junto.
- Pertenças (Arts. 93 e 94):
- Conceito (Art. 93): São bens móveis que, sem serem parte integrante do bem principal (imóvel ou móvel), se destinam de modo duradouro ao seu uso, serviço ou embelezamento.
- Exemplo: Os tratores de uma fazenda, os móveis de um hotel feitos sob medida, um ar-condicionado instalado em um imóvel.
- Regra Específica (Art. 94): Os negócios jurídicos sobre o bem principal NÃO abrangem as pertenças, a menos que:
- A lei determine o contrário.
- As partes manifestem essa vontade (no contrato).
- As circunstâncias do caso indiquem (ex: venda de um hotel “porteira fechada”).
- Ponto de Atenção CRUCIAL: Esta é uma exceção à regra “o acessório segue o principal”. Pertenças não seguem automaticamente o principal. Decorar o Art. 94 é vital para provas!
- Conceito (Art. 93): São bens móveis que, sem serem parte integrante do bem principal (imóvel ou móvel), se destinam de modo duradouro ao seu uso, serviço ou embelezamento.
- Frutos e Produtos (Art. 95):
- Frutos: Bens acessórios que se renovam periodicamente, cuja percepção não diminui a substância do bem principal (colheitas agrícolas, aluguéis, juros).
- Produtos: Bens acessórios cuja extração diminui a substância do principal (pedras de uma pedreira, petróleo de um poço).
- Regra: Podem ser objeto de negócio jurídico mesmo antes de serem separados do bem principal (venda de safra futura).
- Benfeitorias (Arts. 96 e 97):
- Conceito: Obras ou despesas feitas em um bem (principal) para conservá-lo, melhorá-lo ou embelezá-lo. São sempre resultado de uma ação humana.
- Classificação (Art. 96):
- Necessárias (§ 3º): Indispensáveis para conservar o bem ou evitar sua deterioração (reparo de um telhado que vaza, conserto de um muro que ameaça cair).
- Úteis (§ 2º): Aumentam ou facilitam o uso do bem (construção de uma garagem, instalação de grades de segurança).
- Voluptuárias (§ 1º): De mero luxo, deleite ou recreio, não aumentam o uso habitual (construção de piscina, jardinagem puramente estética, instalação de torneira de ouro).
- Exclusão (Art. 97): Melhoramentos ou acréscimos que ocorrem sem intervenção do proprietário, possuidor ou detentor não são benfeitorias (ex: valorização do imóvel pela construção de um metrô perto; acessão natural como aluvião).
- Importância: A classificação das benfeitorias é fundamental para definir o direito de indenização e retenção do possuidor (Arts. 1.219 e 1.220 CC).
Bens Públicos (Arts. 98 a 103)
Esta seção trata dos bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno.
- Conceito Geral (Art. 98): São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como suas autarquias e fundações públicas de direito público. Todos os demais bens são particulares.
- Classificação (Art. 99):
- I – Uso Comum do Povo: Podem ser utilizados por qualquer pessoa, sem necessidade de permissão especial (rios navegáveis, mares, estradas, ruas, praças).
- II – Uso Especial: Afetados a um serviço ou estabelecimento público específico (prédios de repartições públicas, escolas públicas, hospitais públicos, veículos oficiais).
- III – Dominicais (ou Dominiais): Constituem o patrimônio disponível da pessoa jurídica de direito público; não possuem uma destinação pública específica. São bens que podem ser objeto de direito pessoal ou real pela entidade pública.
- Exemplo: Terras devolutas sem destinação, prédios públicos desativados, bens móveis inservíveis, herança vacante transferida ao Município/DF/União.
- Parágrafo único: Bens de pessoas jurídicas de direito público com estrutura de direito privado (ex: empresas públicas, sociedades de economia mista que prestam serviço público) são, em regra, considerados dominicais, salvo lei em contrário. (Há debate doutrinário sobre a aplicação deste parágrafo, mas é o que consta no texto legal).
- Regime Jurídico Específico:
- Inalienabilidade (Art. 100): Bens de uso comum e de uso especial são INALIENÁVEIS enquanto mantiverem essa qualificação.
- Observação: Podem ser desafetados (perder a destinação pública por ato administrativo) e se tornarem dominicais, aí sim podendo ser alienados.
- Alienabilidade Condicionada (Art. 101): Bens dominicais PODEM ser alienados, mas sempre observando as exigências legais (licitação, autorização legislativa, etc. – conforme Lei 8.666/93, Lei 14.133/21 e outras normas específicas).
- Imprescritibilidade (Art. 102): Bens públicos NÃO estão sujeitos a usucapião (aquisição por posse prolongada). Nenhuma categoria de bem público pode ser usucapida!
- Ponto de Atenção Máxima: Esta regra é absoluta e vale para TODOS os bens públicos (uso comum, uso especial e dominicais). É tema recorrente em provas!
- Uso (Art. 103): O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou oneroso (retribuído), conforme a entidade administrativa estabelecer legalmente (ex: pedágio em rodovias, taxa por uso de espaço em feira livre).
- Inalienabilidade (Art. 100): Bens de uso comum e de uso especial são INALIENÁVEIS enquanto mantiverem essa qualificação.
Fontes Confiáveis para Aprofundamento
- Código Civil (Lei nº 10.406/2002): Leitura obrigatória dos artigos comentados.
- Doutrina Civilista: Manuais de Direito Civil de autores renomados como Flávio Tartuce, Carlos Roberto Gonçalves, Maria Helena Diniz, Caio Mário da Silva Pereira, etc.
- Constituição Federal: Art. 20 (bens da União), Art. 26 (bens dos Estados), Art. 183, §3º e Art. 191, Parágrafo único (reforçam a imprescritibilidade dos imóveis públicos).